A ciência romântica de Luria: contextos de uma época e estudos contemporâneos
Organização: Bruno Muniz Figueiredo Costa, Jader Jane Moreira Lopes, Luiz Miguel Pereira
UMA VIDA PELA VIDA: ALEXANDER ROMANOVICH LURIA
Este livro descreve o dano causado à vida de um homem por um projétil que penetrou em seu cérebro. Embora ele tenha feito todo o esforço imaginável para recuperar o próprio passado, e haja assim alguma chance que de que tenha um futuro, as probabilidades são arrasadoramente contra ele. Creio, porém, que em certo sentido se pode dizer que ele foi vitorioso. Não é falsa modéstia de minha parte não desejar crédito algum por este livro. O verdadeiro autor é seu herói. (A.L. Luria, Moscou, 1972)[1]
As palavras transcritas acima, fazem abrem o livro “O homem com um mundo estilhaçado” (2008), escritas por Alexander Romanovich Luria a partir das muitas páginas escritas por Zasetsky, um dos seus pacientes. Os dois se encontrariam a partir de um trágico evento ocorrido em meio a Segunda Grande Guerra, quando, no campo de batalha, o subtenente Zasetsky, então com seus 23 anos de idade, seria vítima de uma situação que viria atingir e destruir parte de seu cérebro, como ele mesmo narra em suas lembranças:
E agora posso lembrar-me de estar lutando em algum lugar na frente ocidental…e ser ferido na têmpora. Mas um mês depois eu estava de volta à frente de batalha […]isso foi em 1943…o setor ocidental do front…a batalha de Smolensk. Em algum lugar perto de Vyazma, um pelotão lança-chamas posicionado no Rio Vorya recebera ordens de unir-se a uma companhia de fuzileiros para um ataque contra os alemães. Pretendia-se que as forças conjuntas dos lança-chamas e da companhia de fuzileiros penetrasse na defesa alemã na margem oposta do Vorya. […] Todo mundo começou a se deslocar […]subitamente, houve a rajada de tiro do lado deles, metralhadoras pipocando em todas as direções. As balas zuniam sobre minha cabeça […] Mas eu não podia ficar ali esperando […] Sob o tiroteio, saltei sobre o gelo, avancei…rumo a oeste…lá…e… […] Em algum lugar não muito distante de nossa posição mais avançada […] numa barraca muito iluminada, finalmente voltei a mim…Por alguma razão não conseguia lembrar-me de nada, nem falar nada. (Idem, pg. 28-9)
Entre um momento e outro, que localizam Zasetsky em locais diferentes: o front e a barraca iluminada, há uma interrupção, um hiato na narrativa, mas um excerto do caso que viria ser registrado em detalhes depois pode explicar o acontecimento:
Excerto da história do caso n.3.712 O subtenente Zasetky, de vinte e três anos, sofre na cabeça um ferimento a bala que penetrou na área parieto-occipital esquerda do crânio. O ferimento foi seguido de um coma prolongado e, apesar do pronto atendimento num hospital de campanha, teve complicações posteriores por inflamação de que resultaram aderências do cérebro ás meninges e causando aliterações acentuadas nos tecidos adjacentes. A formação do tecido cicatricial alterou as configurações dos ventrículos laterais, empurrando o ventrículo lateral esquerdo para cima e produzindo uma atrofia da medula dessa área. (idem, pg. 41)
E esse episódio, ocorrido as margens do Rio Vorya, na batalha de Smolensk, viria alterar o viver desse jovem combantente: Lev Alexandrovich Zasetsky, que nascera na cidade Kazanovka, Rússia, em 9 de agosto de 1920 e viria falecer no dia 9 de setembro de 1993, em Oblast de Tula, também Rússia. A partir daí, ele começaria uma intensa luta para recordar a sua própria existência, memórias, lembranças perdidas e destruídas pelo projetil e os estilhaços, que agora em seu corpo, espalhavam para muito além dele suas próprias histórias e geografias pessoais. E, foi passando por algumas instituições, em busca de sua recuperação, que ele se encontra, em um momento com Luria, algo que se tornaria uma longa caminhada conjunta, como aponta o próprio psicólogo soviético:
A primeira vez que encontrei-me com esse homem foi em fins de maio de 1943, quase três meses depois de ter sido ferido. Para acompanhar o curso de sua doença, eu o vi com bastante regularidade durante um período de vinte e seis anos (semanalmente ou, às vezes, a intervalos longos). À medida que nossa amizade se desenvolvia, fui tendo a oportunidade de testemunhar sua longa e incansável luta para recuperar o uso de seu cérebro danificado – para viver, não apenas existir. (idem, pg. 38)
Vinte e seis anos, encontros semanais ou intervalos mais longos, mas sempre encontros, independente da regularidade temporal, estabelece-se uma relação entre eles com um grande objetivo: marcar a diferença entre viver e existir.
E é essa escolha ética, política, teórica; a práxis de Luria em sua vida profissional e pessoal, que irá nos inspirar a conhecer de forma mais profunda a sua biografia. Começamos com esse encontro e episódio, não apenas por ilustrar a construção desse livro, mas por sua densidade humana, por aquilo que viria a ser a ciência, os postulados e as metodologias que estarão na defesa desse autor.
Fizemos um reconte intencional, um denso retalho as vezes esquecido por muitos que se dedicam aos seus estudos no Brasil e, também em outros territórios, talvez seduzidos pelos contemporâneos discursos sobre as perspectivas neurociêntificas. Nossa escolha foi pautada em uma das escolhas do Luria: a sua opção pela Ciência Romântica, por sua tentativa de pensar uma forma outra de lidar com a vida daqueles que chegavam até ele.
Uma escolha e uma atitude que viria mudar as formas como deveria ser a relação “cliníca”, uma decisão e atitude em mudar o próprio adjetivo “paciente”, como nos aponta Jerome S. Bruner, no prefácio do livro “A mente e a memória- um pequeno livro sobre uma vasta memória”[2] (1999, pg. XI):
E assim, finalmente, instigados pelo espírito de Luria, estamos aprendendo a compreender os surdos, os cegos, os paralíticos, os mutilados – compreendê-los como seres humanos que lidam ou não conseguem lidar com a condição humana, e não apenas como portadores de um problema médico.
[…]
Jader Janer Moreira Lopes
Brasil, outono de 2022.
[1] As referências utilizadas nesse texto fazem parte da obra LURIA, A.R. O homem com um mundo estilhaçado. Petropólis: Vozes, 2008. O desenho que abre o material é de Lorena Costa Lopes, gentilmente elaborado e cedido para esse livro a partir de outras imagens (contato: Lorena Lopes <lorenalopes.lopes@gmail.com)
[2] LURIA, A.R. A mente e a memória – um pequeno livro sobre uma vasta memória. Martins Fonte: São Paulo, 1999.
Ano de lançamento | 2022 |
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Número de páginas | 237 |
ISBN [e-book] | 978-65-5869-932-3 |
Organização | Bruno Muniz Figueiredo Costa, Jader Jane Moreira Lopes, Luiz Miguel Pereira |
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